domingo, 4 de setembro de 2011

Mães-coragem

Há alguns dias, no meu FB, houve uma amiga que comentou um post meu acerca de maternidade natural com uma frase que há muito tempo que eu não ouvia:
"Admiro a tua coragem!Mas eu acho que vou para o hospital."
Primeiro fiquei perplexa, porque não tinha falado sequer em parto domicilar... Ela depreendeu que a minha refª a "parto natural" só podia ser um parto em casa (por acaso, não era). Logo aqui começa o preconceito. E passado uns dias esta frase começou a irritar-me... Porque seria eu a corajosa? (seria um eufemismo para "irresponsável"?)
Eu defendo a decisão informada por parte da mulher. Seja ela o parto domiciliar não-assistido (ver aqui um exemplo) à cesariana electiva e todas as opções pelo meio (embora, confesso, ambos os extremos que citei me causem arrepios).

Para mim, as mães-coragem de hoje são na realidade as que se dirigem "como carneiros" (sem querer ofender alguém), para o hospital para parirem os seus filhos (ou verem os seus filhos serem paridos por outrém), sem se informarem, sem se inteirarem do que acontece durante o parto, sem pedirem uma 2a ou 3a opinião quando os seus médicos lhes indicam exames extra ou a necessidade de uma indução ou cesariana. Ou mesmo sabendo tudo isso, ainda assim se dirigem para o hospital com a espada sobre a cabeça por causa da questão que todo o profissional de saúde utiliza para lhes virar a mente do avesso: "A mamã é que sabe... Quer que aconteça algo de errado ao seu bebé ou a si?" [Que golpe baixo...]
Nenhuma mãe [no seu juízo perfeito] quer que aconteça algo de errado a si ou ao seu bebé. E poucas mães têm a soberba de achar que sabem tudo e mais alguma coisa... ao contrário da maior parte dos profissionais de saúde, que até podem nunca ter passado por e/ou assistido de facto a um parto totalmente fisiológico, mas que "sabem" quando o bebé está pronto para sair, "sabem" quanta dor aguenta a parturiente, "sabem" quanto tempo deve demorar o parto. E claro, sabem TODOS os riscos associados a esse "perigoso" fenómeno que é o nascimento humano. Infelizmente, o que a maior parte deles não sabe [e chega mesmo a enfiar a cabeça na areia para não ver], são as inúmeras perturbações que provocam numa parturiente com a sua atitude e procedimentos durante o parto, em especial o hospitalar (sim, porque o parto domicilar também não está isento destas interferências).

O bom (e mau) da assistência contemporânea ao parto está precisamente na unicidade da equipa que nos atende, seja em que local for, e na "sorte" que calha de ter presente uma equipa que respeite a individualidade do parto em questão e ao mesmo tempo, tenha a experiencia suficiente para "segurar o dedo no gatilho" ou "disparar certeiro" em situações em que basta aguardar algum tempo para se resolverem ou por outro lado ir de imediato para soluções mais drásticas.
Para mim, as mulheres que vão para o hospital, e se sujeitam a:
1) não saber que equipa lhes vai calhar (ou até sabem, mas nunca estiveram com ela nessa situação)
2) são submetidas a inúmeros procedimentos de rotina em pleno trabalho de parto (como assinatura de termos de responsabilidade e formulários de admissão; tricotomia e clister, veias canalizadas, soro com indutores, obrigação de permanência no leito em litotomia, CTG contínuo, etc, etc)
3) luzes fortes, ambiente de adrenalina em que o relógio e os toques é que mandam, em que o silêncio é constantemente interrompido por ordens, comentários inadequados ou conversas completamente desconsiderantes para a parturiente
4) serem tratadas como "gado", não lhes explicando o que se está a passar, em que são deixadas sozinhas ou então sem o apoio de um familiar, doula ou amiga...
5) se habilitam a apanhar uma infecção por exposição a microorganismos patogénicos que proliferam no ambiente hospitalar e são disseminados pelo pessoal ou por doentes...
(há muitas, muitas mais mas acho que vou parar por aqui) para mim, essas mulheres é que são realmente mães-coragem.

À medida que eu me informava mais acerca da fisiologia do parto, das opções disponíveis no hospital e de toda a parafernália de monitorização e emergência também disponível para o parto no conforto da minha casa, cada vez mais eu pensava "coragem? coragem preciso eu para sair de casa e ir para o hospital!".
Nos primeiros meses depois do parto da minha filha, eu recebi o comentário da "coragem" quando dizia que a minha filha tinha nascido em casa, e achava graça. Agora, passados anos, já não acho tanta graça, mas incredulidade, porque vejo mulheres com educação superior, capacidades intelectuais e físicas brilhantes descurarem de se informar e agir sobre um dos momentos mais importantes da sua vida...

Há cada vez mais estudos que referem que os partos domiciliares são tão ou mais seguros que os partos hospitalares. E sem dúvida alguma que o atendimento é 1000x mais personalizado na primeira hipótese... Os partos domiciliares geralmente correm bem porque:
1) a mulher geralmente informou-se sobre a sua opção (ou mesmo que não o tenha feito) sente-se plenamente SEGURA com esta opção.
2) não há lá ninguém para atrapalhar com todas as situações que já referi em cima, ou seja, na ausência da cascata de intervenções em que a necessidade de umas está encadeada nas precedentes, não há que remediar o que à partida está a correr bem.
Odent diz no seu livro Childbirth in the Age of Plastics que os requisitos para o desenrolar positivo do trabalho de parto, seja onde for, são: silêncio e penumbra (a linguagem e a luz são poderosos activadores do neocortex, que deve estar "desligado" durante o parto) ou seja, o mínimo de interferência. Ele recomenda apenas que esteja uma parteira a um canto da sala, tricotando ou fazendo outra tarefa repetitiva (ou seja, relaxante para inibir a produção de adrenalina) de forma à mulher sentir que está acompanhada mas que tem toda a liberdade ao seu dispor.

É claro que se houver um problema grave, (o que é extremamente raro numa gravidez de baixo risco) deve-se considerar a transferência imediata para o hospital (e muitos dos parteiros activos em Portugal exige mesmo a proximidade de uma unidade de saúde para a eligibilidade de um parto domiciliar), mas mesmo no hospital estas situações acontecem, por vezes com desfechos menos positivos... E é isso que à partida todos devem ter em conta: a vida implica a morte. O parto é um momento da vida, em que pode ocorrer a morte, seja em que local for. Estar em paz com este facto ajuda a relevar esta preocupação e a concentrar em aspectos positivos mais benéficos para o bom desenrolar do parto tanto para a mãe como para o bebé.

Mas para quem não se sinta seguro em casa, o hospital pode e DEVE ser uma opção. E é muito triste que isso não aconteça. Por isso é tão importante que todas as mulheres elaborem um plano de parto e o discutam com os seus cuidadores. Desta forma poderão ter uma ideia do que podem ou não ter na hora H e sensibilizar a classe médica para opções que cientificamente já estão estudadas como seguras/benéficas mas que ainda não são praticadas em hospital. [Já há várias mudanças de mentalidade e procedimentos decorrentes da crescente expressão da opinião pública].
Assim como seria muito benéfica a existência de casas de parto, perto de maternidades, que permitissem às grávidas estar perto em caso de emergência, mas à partida num local onde não houvesse "doentes" mas apenas parturientes, em que a grávida pudesse entrar com a certeza de estar num local onde tivesse todo o tempo do mundo para parir; onde soubesse que as suas decisões e desejos iam ser respeitados; onde tivesse um ambiente calmo, silencioso, com poucos observadores, com pouca luz e toda a liberdade para se movimentar assim como vários métodos de alívio da dor disponíveis e previamente explicados... Tenho a certeza que se estes locais existissem, se a assistência ao parto de baixo risco voltasse a pertencer maioritariamente a enfª-parteiras com formação adequada em vez de médicos altamente especializados que têm o seu treino apenas em casos de risco ou já de si patológicos (e que provavelmente nunca assistiram à energia que emana durante um parto natural), a nossa taxa de ventosas, forceps e cesarianas desceria abruptamente.

As mães-coragem não sabem que o são.
Elas são-no todos os dias nas maternidades por esse mundo fora, quando estoicamente subsistem a abusos obstétricos, a intervenções desnecessárias e torturosas que por vezes deixam marcas para a vida... Assim, admira mesmo que a taxa de natalidade não esteja cada vez mais baixa...

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