segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

O que esperar quando o inesperado acontece

Ok, não é bem o inesperado, porque todos sabemos que o que vive tem que, um dia, morrer. Mas para a grávida que desejou ter aquele filho, é a última coisa coisa que quer pensar que pode acontecer.

Este evento levou-me para um sítio escuro, mas fez-me crescer em muitos aspectos. Fortaleceu a minha relação com o meu companheiro, mostrou-me amizades e o apoio de pessoas que eu não esperava e fez-me pensar no pouco ou nenhum apoio emocional que está disponível ou é dado às ex-mamãs...

(Quase) Toda a gente, desde a família, aos amigos, aos profissionais de saúde, têm uma visão muito lógica da perda gestacional. Ou porque nunca passaram por uma; ou porque tiveram o azar de passar por uma e a sorte de não se terem ligado emocionalmente à gravidez e ao bébé; ou simplesmente porque lhes faz muita confusão pensar na Morte, especialmente na morte de um potencial Ser Humano; ou ainda porque a sua filosofia de vida lhes permite não se preocuparem com esses assuntos (porque para eles o feto "ainda não é gente" ou então "porque Deus/Universo planearam assim").
Lamento, mas a lógica não se aplica ao Amor que uma mãe sente pelo seu filho, mesmo que ele ainda não tenha nascido... Portanto todos os argumentos que quiserem dar a uma mãe que acabou de perder o seu bébé podem fazer todo o sentido, mas não para ela.
Assim, cada um tem a sua forma e o seu tempo de fazer o luto, e só temos que respeitar e apoiar as pessoas que passam por isso e a forma como escolhem passar por isso.

Há uma carta muito bonita escrita por uma mãe para outras mães que sofreram perdas gestacionais e que serve para enviar aos contactos que souberam da notícia para saberem o que dizer e o que não dizer a quem perdeu um filho. Mas isso dá outro post...

Geralmente, as pessoas sentem-se desconfortáveis em falar sobre o assunto, especialmente os pormenores mais gráficos, pelo que senti um grande hiato quando me vi a passar pelo processo... Para além de ter que lidar com toda a carga emocional da perda gestacional, tive uma ausência de informação do que podia acontecer e das opções disponíveis. Valeram-me os testemunhos de 6 bravas mulheres minhas amigas que também já passaram pelo processo uma ou várias vezes e que me deram algumas luzes... No entanto, tal como cada gravidez, cada aborto é vivido e sentido de forma diferente, e os tempos de gestação delas também eram diferentes do meu, pelo que eu não sabia bem o que esperar. Segundo elas, consistia numa menstruação mais abundante, tão dolorosa ou um pouco mais ainda que a minha menstruação habitual.

Cronologicamente, eu descobri às 12 semanas que o meu bébé deve ter morrido por volta das 10 semanas. Nessa altura, o nosso médico perguntou-nos o que queríamos fazer:
- Visto que eu já estava a perder algum sangue diariamente, podíamos esperar;
- podia tomar uns comprimidos (cytotec, que umas amigas referiram ter tomado oralmente e outras vaginalmente) mas é uma substância com muitas contra-indicações e riscos para a mãe, que provoca dores e hemorragias muito fortes.
- A última opção seria fazer uma D&C (dilatação & curetagem), geralmente apelidado de "raspagem" em que o conteúdo do meu útero seria succionado ou, no caso de estar com muita aderência, raspado e succionado. A D&C tem a vantagem de deixar tudo "limpinho" em 15 minutos mas a terrível desvantagem de poder deixar cicatrizes no útero que dificultem novas gravidezes (para além de ser uma intervenção cirurgica com anestesia).

Ambas as perspectivas (comprimidos ou raspagem) me pareceram na altura muito agressivas, e eu ainda estava em choque com a notícia, pelo que decidimos aguardar mais uma semana. Foi-me dito que quando eu tivesse a hemorragia me deveria dirigir ao hospital para ver se "tinha saído tudo". Apesar de o médico ter sido muito empático e nos ter tentado reconfortar nos minutos seguintes à notícia, não me foi oferecido ou aconselhado nenhum tipo de ajuda emocional ou terapia.

Fomos para casa e nessa semana eu pude começar a fazer o luto emocional do meu bébé.
Foi difícil porque todas as questões inundavam a minha cabeça: "porquÊ? como? será que fiz alguma coisa? será que não fiz algo essencial? será que ele sofreu?" etc. etc. Comecei a tomar substâncias abortivas, como óleo de ricino para purgar, chá de framboeseira para iniciar contracções no útero, chá de salva com canela e gengibre para ajudar a purgar. Subia e descia as escadas do prédio para desencadear alguma coisa (o médico tinha dito que exercício ajudava). Tomei pílulas homeopáticas para iniciar o trabalho de parto. A minha doula veio fazer-me reflexologia podal para ajudar o útero a esvaziar (massajando pontos específicos entre o tornozelo e o calcanhar do lado interior do pé). Escrevi uma carta de despedida ao bébé (tinha escrito uma de boas-vindas quando senti que estava grávida)... Mas nada: nessa semana não perdi nem mais uma gota de sangue (o meu corpo queria carinhosamente agarrar o seu produto e fechou-se). Tive que fazer um grande esforço mental e emocional para me despedir desta gravidez e deste filho...
Quando regressei ao médico na semana seguinte estava tudo na mesma; ele fez-me um toque e disse que eu já estava a dilatar, e eu pedi para aguardar mais uns dias porque estava a ter umas moínhas e, se não estivesse grávida, a minha menstruação estava prevista para o final dessa semana.
Falámos em fazer moxabustão e acupunctura para acelerar o processo de contracções mas no dia seguinte comecei a perder borrões de sangue escuro e pastoso e a ter moínhas, tipo as primeiras contracções que tive quando foi do parto da moyinha. Andei a subir e descer escadas durante algum tempo, e depois durante a tarde não tinha posição: as moínhas eram constantes e incomodativas. Chorei muito porque senti que estava a chegar a hora de me despedir a sério do bébé que carregava. Foi muito duro estar sozinha nesse dia. Fui buscar a bola de parto para me apoiar e ajudou-me a encontrar posições mais confortáveis.

Depois do jantar, ainda com moínhas, senti vontade de urinar e de repente senti um "pop" como se fosse um coágulo a sair. Verifiquei e era líquido rosado: a bolsa tinha rebentado. Sentei-me no bidé e alguns segundos depois saiu um coágulo escuro do tamanho de uma uva e logo em seguida o nosso bébé, do tamanho da falange distal do meu dedo polegar (~2,5cm). Estava limpinho, sereno, perfeito. Tinha os dois olhinhos escuros e redondos, os orifícios do nariz e a boca desenhada. As suas mãozinhas e pezinhos tinham os dedos definidos. Guardámo-lo e passados uns segundos eu comecei a perder um fio de sangue contínuo e alguns coágulos. As dores eram iguais e eu até me sentia bem, mas em c. de 20 minutos tinha enchido meio bidé com o meu sangue. Comecei a sentir-me fraca e medi a tensão: 9-5. Aí não me lembro de mais nada: o meu marido diz que eu desmaiei e chamou uma ambulância. Vou poupar-vos aos pormenores mas posso dizer que fora alguma fricção ter questionado procedimentos, fui muito bem tratada pelo pessoal. Mas mais uma vez, nunca ninguém me perguntou se eu queria falar sobre o que me estava a acontecer de um ponto de vista emocional ou me dirigiu para alguém com quem eu o pudesse fazer.

Pelo que percebi, a maioria das mulheres a quem isto acontece faz duas coisas:
- quer "livrar-se" das "provas" de gravidez o mais rapidamente possível, recorrendo a intervenções médicas; e
- fecha-se no seu silêncio/dor/vergonha, tendo apenas algumas confidentes, mas que geralmente lhe dizem o normal: "tens que ultrapassar isso", "foi pelo melhor", "antes agora que mais tarde"... Tudo com boa intenção mas acabam por fazer com que a ex-mamã sinta para além de tudo, culpa por ainda estar a pensar em tudo ou então enfiar tudo para dentro, o que mais tarde se pode revelar mais problemático... Mas isso então dava uma série de posts...

Tive alta hospitalar 24h mais tarde, depois de ter tido uma noite de expulsão de coágulos e moínhas bastante incomodativas, e vim para casa com a recomendação de repouso. Não me foi dito o que esperar (eu perguntei e lá me disseram que iria perder mais algum sangue nos dias seguintes) ou quais os sinais de alarme a ter em conta (febre, dores agudas, alterações de tensão, edema, hemorragia intensa). Por um lado, penso que casos como o meu (de querer esperar e ter tudo o mais natural possível), são tão raros que acredito que não sei alguma vez viram este processo do início ao fim...

Perdi sangue (pouco) e corrimento com sangue por mais 3 semanas (até agora). Ainda fiquei um pouco preocupada pois ontem senti um ligeiro odor no fluxo de corrimento, mas a minha parteira assegurou-me que isso é normal e se não está acompanhado de dores fortes ou de estado febril, não há causa de alarme.O útero já está quase todo limpo, já reduziu a espessura e já quase não sinto moínhas. Estou a ser observada semanalmente no hospital. Hoje (31 Jan) senti moínhas mais fortes e perdi mais um coágulo com vasos, do tamanho de uma pen USB. Sinto-me confiante que o meu corpo sabe o que fazer e contente por ter a confiança para lhe dar tempo para ele fazer o que sabe. Actualização: Dia 2 fui ao médico que me confirmou que está tudo ok: o útero já está vazio e que ficou muito contente por eu ter conseguido expelir aquele último coágulo sozinha.

Sou bastante gráfica neste post porque eu própria gostaria de ter encontrado ou tido mais informação a este respeito, visto que tive acesso a tão pouca coisa. Entretanto nas minhas pesquisas encontrei um site http://www.lovenaturalbirth.com/natural-miscarriage.html que tem o testemunho de uma mulher que passou 2 vezes pelo processo naturalmente e que põe as coisas de forma muito natural e empática. Se procurarem por "natural miscarriage" no Google também encontraram mais informação disponível.

Sendo que c. de 25% das gravidezes terminam em aborto (segundo os dados que me foram dados no hospital), é com grande pena e admiração que descubro:
- que não há grupos de apoio nas instituições, ou que as pessoas nem para isso são dirigidas (p.e., existem 2 associações em Portugal, a Artémis, que está sediada no Norte do país; e a Nossa Âncora, que apoia pais que tenham tido nados-mortos, i.e., fetos com tempo de gestação mais avançado).
- que as ex-mamãs que tenham que passar pelo processo em casa, geralmente têm que o fazer sozinhas; e
- que as que têm que passar por isso no hospital, fazem-no em plena maternidade, ouvindo outras mulheres em trabalho de parto, ouvindo o choro de bébés recém-nascidos, partilhando o quarto com puérperas... (graças a Deus eu não tive que partilhar quarto e pude permanecer sempre com o meu marido).

O processo de perda gestacional pode ser um processo muito perturbador emocionalmente. Fisicamente, dependendo também das nossas emoções, pode ir de uma menstruação mais abundante a um pseudo-parto: com moínhas, com a necessidade de evacuar, com vómitos, com contrações... e deve ter o apoio de um parto.

Mesmo a nível mais natural, é raro encontrar quem dê apoio nestes casos. Encontrei este artigo sobre "Doulas de Perda" que fala sobre doulas preparadas para ajudar as mulheres a passar por estas situações: http://dying.about.com/od/hospicevolunteersdoulas/a/loss_birth.htm.

A tod@s as mulheres que já passaram por uma perda gestacional de um bébé desejado, seja com um dia de gestação ou até nado-morto, eu digo:
- Lamento muito pela vossa perda
- Esse(s) bébé(s) foram muito sortudos em vos ter como pais

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